Ele é necessário. O Senhor C odeia-me com o fígado, por isso é meu leitor – senão assíduo, costumeiro. Sob certo ângulo, devo-lhe a minha existência enquanto cronista da paróquia; malquisto ou amado, são vicissitudes deste ofício – desde que lido, digerido, extrusado nas ideias e nos devaneios do Outro.
É noite. Antes de fechar a tela passo os olhos pela caixa de e-mails. Ali está a nova mensagem do Senhor C. Confirmo a suspeita de que faço parte, mesmo sem querer, da vida do Senhor C. Habito os seus pensamentos, penetro-lhe as imagens, arranco-lhe preciosos momentos da existência; segundos, talvez minutos de angústia.
Não importa que o Senhor C dirija-me toda sorte de xingamentos. Devo-lhe consideração, pois nele as minhas palavras encontram ressonância, ao avesso. Senhor C acredita que eu seja marxista, trotskista, simplista, autista, niilista ou até cubista (não com tais palavras). Por não ter muita clareza onde encaixotar-me, abre um leque de termos mais acessíveis: verme, idiota, recalcado, sem caráter, crápula, imbecil, “medíucre” (sic) – et cetera.
Sabe, Senhor C, suspeito que os vizinhos também pensem isso, pela minha popularidade no grupo do whats do condomínio, igual ou menos que zero. O Sr. acerta um pouco em quase tudo, mas não em cheio. Tento refletir porque posso parecer tão odioso aos olhos desta sociedade. Na casa da infância tinha um Gradiente-Garrard que muito tocava os discos de um cantor baiano. Aquela música chamada Mosca na Sopa. Eu gostava. Pode ter sido isso; certos antecedentes transviados.
Não sei por que descargas d’água Senhor C cismou também que eu não respeito nem o meu próprio pai. O pedreiro Alécio Romano morreu há tanto tempo, eu tinha uns 17 anos. Hoje só posso confrontar tal suposição pelo filtro da minha memória, altamente suspeita. Sou um indigno de Deus e da Pátria: certamente tais sugestões não faltariam nos solilóquios do Senhor C. Ao que também estou inclinado a dar-lhe razão.
Comovo-me. Pois se pudéssemos dar um salto até uma estrela próxima, e então olhar para a Terra, ver que não somos ou significamos – eu e o Sr. – nada além de faíscas efêmeras de uma espécie passageira no quintal do mundo. Quando tudo virar cinzas por aqui – estamos na vanguarda disso –, seremos pó indefinido, apenas, Senhor C.
Obs.: Senhor C deixa claro que leu-me outra vez só porque usou o jornal “para a cachorrinha mijar em cima” (eu também gosto de ler jornais velhos no xixi das gatas ou quando acendo o fogo na lareira). Saudações à cadelinha.