Entulhos e restos mortais das aflições de dezembro soçobram na cidade. Depois do primeiro dia do ano, vem de fato o ato inaugural do calendário: o dia 2 de janeiro. E agora?, Seu André, Duque de Caxias, Senhor Bozo. A poeira baixou, o mar o recuou, a rampa liberou, o trono é seu.
Então vejo no verso da fatura do cartão de crédito, na escrivaninha, uma série de anotações dispersas, feitas em lapsos e digressões entre um texto e outro do mês passado.
“App-bio” é um primeiro apontamento. Refere-se a uma grande ideia que me ocorreu, condenada ao fracasso antes de existir. Todos nós já vivemos chipados pelos smartphones, certo? Mr. Google sabe como ninguém dos nossos costumes e rotinas, desejos de consumo e outros códigos mais profundos. Pois, em breve, cada ser humano terá um aplicativo regulatório de cota ambiental.
Tantos mil km queimados de petróleo, tonelagem de consumo, viagens de avião, kilowatts de energia e... babau! Seu odômetro ecológico esgotou. Você é desativado por um tempo, ou definitivamente, antes que o mundo deixe de ser mundo. O App-bio não roda bem em Iphone versão inferior ao 8 ou X, no mínimo.
Outra nota dispersa lembra de um fugaz encontro que tive no restaurante com um jornalista que vivia em outras latitudes e que voltou à Pérola das Colônias depois de anos. Mas a surpresa era só minha, porque eu não tinha visto no Face ou no Insta ou no diabo que o parta e tecle na web que o cara já estava aqui há meses. Coisas e delícias da vida real.
Leio aqui nos rabiscos a palavra “timing”. É que eu ia escrevê-la no corpo da última crônica do ano passado. Mas não estava satisfeito. Era uma expressão afetada, embora adequada à frase; um estrangeirismo preguiçoso e boçal. Cisquei sinônimos em volta, paleteei um dicionário físico (aprecio o peso de um Houaiss). Troquei-a por “sincronia”. Ficou bem. Salve a Língua Portuguesa!
De cabeça para baixo, há outra anotação: é o símbolo da psicologia, aquele tridente que corresponde a uma letra do alfabeto grego (psi). Junto está escrito “pia”. Por onde eu andava naquele rabisco?
Sim!, claro, era a anotação para uma crônica inteira. Significa algo como “psicanálise na pia”. Eu estava lavando a louça em casa, enquanto a mente vagava por um sonho que eu tive naquela noite. Era uma espécie de escuta desatenta sobre mim mesmo, entre sabão e pratos engordurados, de sacanagem com Freud e Lacan.
Procuro mais algum disperso no papel. Topo com o valor da fatura; logo ali, a data de vencimento. Eis 2019.