Faz tempo que ando aflito com a injusta queda do acento agudo dos ditongos abertos em palavras paroxítonas. Isso ainda soa um boato – ou o indigesto termo da moda: uma fake news. Mas o que é tal aflição de um cronista paroquiano diante de uma nação e de seu povo que hoje sentem prazer em pisotear a própria Língua?
De repente digito “idéia” ou “geléia”. Então corro ao aconchego do dicionário para saber por onde navego, para além dos mares turvos do Google. Daí resulta outra das minhas aflições de linguagem: o meu Houaiss é ainda um jovem de 19 anos, mas as suas delicadas e exatas 2.922 páginas já foram atravessadas por uma reforma ortográfica boba e preciosista.
A troca de regras de uso dos hifens, acentos e outras perfumarias gramáticas, bastou para jogar no limbo o meu Houaiss, que substituiu com sabedoria os bons dicionários Aurélio, ícones do ginásio e da faculdade (não se usa mais ginásio...). Lembro o dia em que o comprei na livraria, sentindo seu peso de Bíblia. De fato, na última página consta a genética gráfica digna das sagradas escrituras: “impresso em papel Ermolli Edizioni Bianca [...], na cidade de Bolonha, Itália, em 2001”.
Escrevo como aprendiz. Filho da Língua Portuguesa, neto do Talian – o idioma de raiz vêneta amalgamado nos falares camponeses da imigração –, tento honrar a Língua-mãe. Sinto vergonha, corrijo-me quando erro a escrita de uma palavra, mesmo que seja em uma mensagem efêmera nas redes. Mas vejo que isso tornou-se demodê, obsoleto.
O ar pesado do nosso tempo sopra fama e fumaça pantaneira a favor de quem escreve e fala errado, por ignorância convicta. Gente que teve e tem chances de estudo, mas prefere surfar a pobreza linguística da nova onda política, moral e cívico-militar do país. Nestes dias, ao ler uma discussão de condomínio no grupo de whats, espantei-me mais com o festival de horrores da escrita do que com as triviais farpas entre bons vizinhos.
A Língua nos fala, nos expressa. Isso é desesperador, ao olharmos para as valorações da nossa sociedade. O presidente, em seu discurso na ONU, pronunciou “Cristofobia”, pintando nuances de um Brasil atual. Além de ser outra deslavada mentira, por certo o próprio não domina os contornos de tal palavra – escrita por terceiros, dado o seu autodeclarado desprezo pelas letras.
Diante do quadro geral que compomos, degredados filhos de Eva e Camões, o neologismo que me ocorre é Asnofobia. E o dicionário, como diz um velho conhecido, é o velho e bom amansa-burro.