Este tão tormentoso 2020 cabe exato no título de um conto do virginiano Caio Fernando Abreu: “Pela passagem de uma grande dor”. Tudo nos dói hoje: o corpo, a alma, o mundo, o planeta. Sob o céu de Virgem, signo associado à saúde, convém seguir refletindo sobre a dor, já que esse tema não sai do noticiário. No óbvio, a dor é um indicativo sensorial de que algo abala nosso padrão de ordem, seja física, mental ou emocional. A dor é uma mensagem, portanto. Mas, por ser naturalmente desagradável, nossa reação imediata é silenciar tal aviso. Achamos que matar o mensageiro resolve o problema sobre o qual ele veio informar. Tudo para não mudar a ordem interna que aparentemente nos sustenta. Até que a vida, sempre superior aos nossos controles e pretensões, nos dá uma rasteira em direção à vulnerabilidade. Aí, no rés do chão do demasiado humano, vamos sofrer em dobro: pela dor em si, enfim assumida a contragosto, e por não conseguirmos dominá-la sozinhos.
A negação da dor é uma prática coletiva, quase uma norma social. Ainda que seja real a perversa multiplicação de farmácias pelas ruas, evitamos reconhecer que nosso modelo de vida adoeceu gravemente. Sendo assim, como aceitar a dor no que ela é: uma condição de estarmos vivos? Como, se a mesma sociedade que nega a dor rotula os assumidamente doloridos de fracos? Você aí, como não consegue segurar sua onda? Finja, ora! Cante vitórias, poste sucessos, esteja sempre a sorrir. Não há lugar para cansaços, sem essa de “mimimi”. Enquanto isso, cá dentro, sem disfarces, vamos sofrer ainda mais por não podermos aceitar a própria fragilidade. Tudo dói, mas não pode doer: percebe a insanidade de nosso tempo?
Longe de mim exaltar a dor – logo eu, que não suporto nem um latejar nas têmporas –, mas urge mudar a visão sobre essa estranha mensageira de uma nova ordem. Precisamos achar algum sentido para o próprio desconforto. Na loucura lúcida dos poetas, o virginiano Paulo Leminski escreveu: “um homem com uma dor / é muito mais elegante / caminha assim de lado / como se chegando atrasado / andasse mais adiante”. Perfeito, não? Somente um coxo experimenta o âmago do caminhar. Sem uma ferida, um aleijão qualquer, reais ou metafóricos, nossa consciência não se amplia.
Crescer dói, sabemos. E até gostamos de exaltar a potência criadora que a dor engendra. Ah, as telas de Van Gogh ou de Frida Kahlo! Não seriam o que são sem o sofrimento visceral de seus autores! Quisera criar uma obra com essa força! Mas cadê a coragem de aceitar o tormento que a dor traz? Precisa ser um louco como o Leminski para concluir assim seu poema sobre a dor: “ópios édens analgésicos / não me toquem nessa dor / ela é tudo que me sobra / sofrer vai ser minha última obra”. Já nesse entorpecido mundo de valores materiais, quem sofre é que é posto fora da ordem vigente. Pareça forte, eis a lei.
Precisamos escapar desse simulacro de vida. Há um mundo em colapso. Doente não é quem desaba, quem chora, quem pede ajuda. Doente é quem não sente nada, indiferente aos demais. Se nossa alma não sentir a dor do planeta, não haverá qualquer salvação para ele. O analista junguiano Roberto Gambini afirma: “A alma doída adquire uma força, uma radicalidade surpreendente em sua maneira de se expressar e de entender as coisas”. E essa oportuna força produz coragem e ousadia para agir. Assim, meu povo, que nosso desconforto seja o que nos una na busca de uma ordem mais justa. Hoje, na passagem dessa grande dor, pior mesmo é não sofrer.