Intensa. Talvez seja essa a palavra que melhor define a personalidade de Alessandra Negrini. Sabe aquele tipo de pessoa que transborda? De expressões a opiniões, com ela é tudo assim, à flor da pele. Pode ser que isso explique as escolhas e os caminhos tão pouco tradicionais que marcam os 25 anos de carreira da atriz. Desde sua consagração como a protagonista de Engraçadinha, minissérie de sucesso da Globo em 1995, Alessandra costuma passar longe dos papéis de mocinha casadoura e apaixonada. Tanto que vive sua quinta antagonista seguida na TV, a dissimulada e divertida Susana da novela das seis, Orgulho e Paixão, uma adaptação da obra de Jane Austen.
Nesta semana, Alessandra chega aos cinemas do país (sem previsão de estreia no Estado), em uma produção também inspirada na literatura. E na pele de uma mulher que propõe reflexões sagazes e bem-humoradas sobre a vida (e os dramas!) da mulher contemporânea. Ela é uma das quatro Mulheres Alteradas que saem dos quadrinhos da cartunista argentina Maitena diretamente para as telas. No longa, dá vida a Marinati, uma advogada workaholic que se apaixona quase sem querer.
– Ela fala do medo que temos de nos apaixonar e de nos perder de nós mesmos. O que é inevitável em um grau ou outro. No caso do filme é exagerado para ser engraçado – conta, em entrevista por e-mail.
Em Mulheres Alteradas, divide as cenas com outras três protagonistas: a mãe em apuros Monica Iozzi, a adolescente “tardia” Maria Casadevall e a esposa insegura Deborah Secco. E Alessandra engrossa o coro das atrizes que pedem mais visibilidade e protagonismo às mulheres na ficção.
– O público precisa disso – destaca.
Se nas telas Alessandra vive mulheres fortes e com uma boa pitada de sensualidade, nas redes sociais sua imagem é tão poderosa quanto. Já postou foto nua e recebeu centenas de elogios em troca. Não pensa duas vezes ao fincar posição em temas como o aborto e o racismo, e virou voz ativa contra a violência que assola o Rio de Janeiro. E, claro, é inspiração para mulheres que, como ela, não se prendem a estereótipos relacionados à idade – completa 48 anos no mês que vem com o status de musa intacto. Também esbanja humor: já deu até bronca, pelos comentários do Instagram, no filho Antônio, 21 anos, fruto de seu relacionamento com Murilo Benício – ela também é mãe de Betina, 13 anos, filha do cantor Otto.
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No bate-papo a seguir, Alessandra fala sobre temas que vão de cinema nacional a literatura, passando pelo momento de debate envolvendo as mulheres.
Você está completando 25 anos de carreira. Como você avalia essa trajetória?
Tenho que ter orgulho dela, afinal é uma carreira difícil que requer muito amor, dedicação e esforço. Precisamos dar valor para as coisas que construímos, para que a vida tenha sentido. Permanecer forte nos momentos difíceis e assumir suas escolhas, não importa para onde elas te levem, é o que faz você construir um caminho bonito.
E você vive sua quinta antagonista em novelas. Prefere de fato o papel de vilã?
Não se trata disso. Aceito qualquer personagem que me pareça interessante. A Globo gosta de me chamar para fazer vilãs, fazer o quê? Acho que eles me veem como uma pessoa de personalidade um tanto quanto irreverente, sei lá. Já no cinema não é assim, tenho chance de fazer outras coisas. Pelo menos a Susana (de Orgulho e Paixão) é engraçada e leve, por isso fiquei com vontade de fazer. Posso brincar e me divertir. Estou adorando este trabalho.
Você está em uma novela baseada na obra de Jane Austen, autora clássica que tratou de temas relacionados às mulheres. Qual a sua relação com escritora?
Não li Jane Austen, a não ser Lady Susan, que é um livro quase cômico, escrito em forma de cartas da personagem que interpreto, Susana. Ela escreveu com 19 anos e é um primor.
Já a Maitena usa a autoironia como poucos para abordar questões femininas e do cotidiano. Que temas da autora mais tocam você?
Todas as mulheres se identificam com Maitena, são questões muito cotidianas do universo feminino. Você se vê retratada ali da melhor forma possível, com humor – por isso é tão bom. Viver é difícil, amar, criar filhos, ser competente profissionalmente e ainda ser bonita, magra e bem-cuidada. Tarefa pra heroínas, eu diria! Precisamos rir disso tudo de tempos em tempos e, se pudermos rir juntas, melhor ainda. O bom do feminismo de hoje é que a união faz a força mesmo!
E como você espera que seja a reação do público com Mulheres Alteradas?
Que se identifiquem e riam! Que se divirtam, é isso que espero. Minha personagem fala do medo que temos de nos apaixonar e de nos perder de nós mesmos. O que é inevitável em um grau ou outro – no caso do filme é exagerado para ser engraçado. A Marinati vira outra pessoa quando se apaixona! (risos) Eu amo!
As atrizes de Oito Mulheres e um Segredo comentaram como foi boa a experiência de trabalhar com um elenco feminino. E para você, como foi essa vivência no set?
Não trabalhei só com elenco feminino, tínhamos os nossos parceiros. Colega é colega independentemente do sexo, o que conta é a disponibilidade para jogarmos juntos. Eu e Deborah (Secco) já fizemos uma dupla antes (na novela Boogie Oogie) e foi sensacional: gosto de trabalhar com ela, temos o mesmo estilo de jogo.
E estrelar um filme em que o protagonismo está completamente nas mãos das mulheres?
Muito importante. O público precisa disso. A mulher precisa se ver de outra forma e não só retratada em narrativas em que o maior e único problema é uma outra mulher! Personagens se estapeando, querendo acabar umas com as outras por causa de homem. Isso na minha opinião é antigo e machista.
Há cada vez mais produções nacionais de gêneros variados. Como você vê esse momento do nosso cinema?
O apoio ao cinema ainda é muito pequeno, é dificílimo fazer cinema no Brasil, conseguir dinheiro, distribuir e fazer com que as pessoas assistam, mas nós não desistimos, e algumas boas obras estão aí para atestar. O dia em que tivermos um cinema forte, nosso país também estará forte. É uma coisa só. O cinema é a imagem e o discurso de um país. Espero ver isso acontecendo.
Em entrevista, você já disse que “não tem idade para fazer mocinha”. Como você vê o espaço dado a mulheres de diferentes idades e o que tem mudado em relação a isso na TV e no cinema?
Claro que há idade para fazer mocinhas (risos), o nome mesmo diz... Não há idade para se falar do amor e do desejo, porque são questões humanas eternas. Para o ator, a idade não é um impedimento no que se refere a personagens, mas, infelizmente, em um país tão infantilizado quanto o nosso, muitas obras de dramaturgia não tratam de temáticas adultas. Isso é um problema nosso. Porque filme argentino é bom? Porque fazem filmes para adulto ver, não infantilizam o público – ao contrário, contam com a inteligência das pessoas, e isso é fundamental.
Nas grandes premiações, atrizes têm usado o microfone e a visibilidade para colocar em pauta temas como o assédio e a desigualdade salarial. Como você vê os avanços desses temas?
Muito pouco (avanço), mas não devemos desistir jamais. E a tendência é melhorar.
Você costuma se posicionar sobre temas caros às mulheres, como o aborto, aprovado na Câmara federal da Argentina. Como você vê os reflexos dessa decisão no Brasil?
Até onde sei, reflexo nenhum. Aqui estamos caminhando a passos largos para o retrocesso. Precisamos varrer da política esses que estão aí, com raras e heroicas exceções, e votar em gente progressista, inteligente, honesta e bem preparada. Gente que tenha verdadeiro amor pela causa pública. Há que se ficar esperto agora.
ENTRE LIVROS E PERSONAGENS
No cinema e na novela, Alessandra Negrini vive mulheres saídas diretamente das estantes de livros para as telas. Quando perguntamos a ela que outras criações da literatura ela gostaria de interpretar, esbarramos em uma leitora conhecedora dos grandes clássicos e atenta à literatura contemporânea. Na entrevista, contou que se inspira em todos os livros da francesa Marguerite Duras, com sua escrita feminina, e de Clarice Lispector. Veja outras personagens que marcaram a atriz que se diz “eterna leitora” de Marcel Proust e também apaixonada por uma recente descoberta, Valter Hugo Mãe:
Anne Frank
“Li Anne Frank na juventude e me inspirou bastante.”
Loreley
“Loreley, de Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector, pela descoberta da sexualidade e das linguagens.”
Mulheres de Shakespeare
“As personagens de Shakespeare: Julieta pelo romantismo, Ofélia pela loucura.”
Diadorim
“A personagem de Grande Sertão: Veredas, de Guimaraes Rosa, pela dualidade.”
DAS TELAS PARA AS PÁGINAS
Patrícia Rocha
Da clássica escritora britânica Jane Austen à irreverência e à ironia contundente da argentina Maitena, Alessandra Negrini a na TV e no cinema personagens de duas das minhas autoras favoritas. Se você ainda não conhece a obra dessas duas mulheres, tão atentas às questões femininas de seu tempo, aproveite o embalo. Eu recomendo!
As heroínas de Jane Austen
Alessandra Negrini vive em Orgulho e Paixão talvez uma das menos conhecidas personagens de Jane Austen (1775 – 1817). A divertida vilã Susana é uma versão de Lady Susan, do romance de mesmo nome que a autora começou a escrever aos 19 anos. Publicado em forma de cartas, o livro traz uma personagem bem diferente das mocinhas atrevidas, mas sempre de boa índole, de Austen: Susan é uma viúva na casa dos 30 anos disposta a fazer o que for preciso para conseguir um casamento vantajoso para si e para a filha. Para quem conhece bem os livros clássicos da autora, é uma chance de ver um outro lado dela, mais divertido e provocativo.
Mas Lady Susan é só uma pequena parte das muitas referências da novela das seis. Orgulho e Paixão é um convite a mergulhar na obra de Jane Austen: a trama mistura (com as devidas adaptações à dramaturgia e às preferências do público) inspirações e histórias da doce e passional Marianne, de Razão e Sensibilidade (1811), das irmãs Elizabeth e Jane, do meu preferido, Orgulho e Preconceito (1813), da bem-intencionada e algo presunçosa Emma, do romance homônimo de 1815, e também da imaginativa Catherine, de A Abadia de Northanger (1818) – este último uma sátira aos romances góticos. Em tempo: sim, a obra de Jane Austen é cheia de amores (não) correspondidos, bailes, mesuras na hora do chá, vestidos delicados e rapapés. Mas vai muito além. Em pleno início do século 19, ela fazia uma eloquente crítica de costumes e questionava a posição e as possibilidades de uma mulher em uma época em que se vetava a uma filha herdar os bens de seu pai – e nada além de um casamento poderia garantir seu futuro.
Alterada à moda Maitena
Sou uma viúva de Maitena Burundarena – ou simplesmente Maitena. A cartunista e escritora argentina ficou internacionalmente conhecida no fim dos anos 1990 com sua série Mulheres Alteradas, que agora ganha uma adaptação nos cinemas brasileiros. Ela usava seu traço marcante e sua escrita afiada para fazer graça das neuras femininas, do medo de envelhecer, das culpas e idiossincrasias da maternidade, do consumo excessivo, da nossa relação com a tecnologia e do que mais estivesse em pauta no momento. E sempre nos fazia rir de nós mesmas. Assim continuou na série Superadas e em Curvas Perigosas. Até que um dia, Maitena surpreendeu ao dar um tempo nos cartuns para lançar, em 2015, Segredos de Menina, um belo romance com um quê autobiográfico sobre uma garota que se torna mulher em Buenos Aires em meio a conturbadas relações familiares. Depois disso, veio apenas a coletânea Lo Mejor de Maitena.
Nas livrarias do Brasil, você encontra o romance da autora e as séries antigas de humor em edições importadas em espanhol – mas é bem fácil comprar as versões em português em sebos virtuais. Para ter um gostinho, siga Maitena no Instagram: @maitenaburunda. E vem novidade por aí: em seu site, maitena.com.ar, ela apresenta a coletânea Lo Peor de Maitena, que reúne HQs publicadas entre 1986 e 1990.