Por Vinicius Brum
Cancionista e mestre em literatura
Inicia-se o mês de setembro e sua efervescência. Mesmo atravessados pelo furor da pandemia viral que assola o planeta, serão dias e dias dedicados à celebração de um pertencimento, de uma identificação. De uma, às vezes exagerada, certeza de que se encontrou cá no sul do mundo um quase éden terreno. E por outro lado, surgem também exasperadas críticas e tentativas de esmaecimento deste vigor, desse acender-se de chamas e de espíritos que se alicerça na formação histórico-cultural do povo gaúcho. Barbosa Lessa nos diz em seu Nativismo, um Fenômeno Social Gaúcho: se um peão de estância sente necessidade de desfilar bem pilchado no dia 20 de Setembro, pouco adianta um teórico fazê-lo compreender que isto seja bom, bonito, feio, atrasado, cívico, lindo ou reacionário.
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Eis que me surge, ou retorna, a indagação: qual a importância de cultivar raízes? Evidentemente refiro-me às raízes culturais. Ao reconhecimento dos legados, àquilo que nos vem sendo transmitido através dos tempos e que são fruto da experiência humana que nos precedeu. Esse movimento que vai se confirmando através de sucessivas gerações cabe numa palavra: tradição. E a ideia que me percorre, quando encontro a palavra, em nada faz relação com uma nostalgia dos bons tempos como às vezes algumas reflexões apressadas podem fazer concluir. Até porque, e isto parece cristalino, não há na história humana um período em que se possa exaltar a excelência das virtudes e, ao mesmo tempo, a ausência das mazelas e das contradições humanas. A tradição judaico-cristã ensina que esse tempo em que só as virtudes existiam na ideia do paraíso terreno, obra do criador, sucumbe diante da tentação e da curiosidade do primeiro casal da espécie humana.
Também não concordo que, como às vezes é comum, se entenda o reconhecimento de uma dada tradição (ainda que inventada) como produto de um fugaz desejo de volta ao passado, como se este fosse a fonte inesgotável de todas as nossas dores. Assim como também lá não se haverá de encontrar as ansiadas respostas que demanda o presente. Não se trata, pois, nem de extinguir o passado, nem de encará-lo como o remédio para todos os males cotidianos. Como nos diz Jorge Luis Borges com sua arguta pontaria, “o propósito de abolir o passado já ocorreu no passado e – paradoxalmente – é uma das provas de que o passado não pode ser abolido. O passado é indestrutível. Cedo ou tarde, tudo volta e uma das coisas que volta é o projeto de abolir o passado”.
Para que voltemos ao centro desta breve reflexão, qual seja a importância de nossas raízes culturais, parece-me que o ponto crucial para o entendimento da questão é sabermos delimitar tais raízes. Na verdade, prefiro falar em origens. E não me canso de sublinhar – provisórias origens. Sempre haverá um tempo anterior. E é da soma de todos os antes que se faz o agora. É difícil não reconhecer que somos um pouco ou um tanto de cada momento da história humana. Estamos aqui e agora, imersos nesta geografia, e atravessados pela flecha de todos os tempos.
Permito-me recorrer a um exemplo da literatura. Em seu livro de memórias, Solo de Clarineta, Erico Verissimo relata como surgiu a imortal trilogia O Tempo e o Vento. Primeiro faz uma breve consideração sobre quando lhe teria ocorrido escrever a saga rio-grandense. E se pergunta: "Em 1935, quando meu estado comemorou o primeiro centenário da Guerra dos Farrapos? Não sei ao certo. Não creio que ideias como essa caiam na cabeça com a força súbita de um raio". Logo adiante, o escritor relata sua aversão ao mundo rural: “Apesar de ser descendente de campeiros, sempre detestei a vida rural, nunca passei mais de cinco dias numa estância, não sabia e não sei andar a cavalo – para escândalo do meu avô Aníbal –desconhecia e ainda desconheço o jargão gauchesco".
Erico segue discorrendo sobre aquilo que detectava como limitação do regionalismo literário, ainda que pontualmente admirasse alguns autores que se dedicavam ao gênero. E, por fim, relembra um episódio que lhe ocorrera numa tarde chuvosa no final de 1930. Estava em casa a ler Baudelaire e ouvindo Manuel de Falla, quando, num rompante, adentra à sala seu tio Tancredo, que acabara de chegar a cavalo de seu sítio. “Vestido à gaúcha." Poncho ensopado e botas embarradas. Entrou, acendeu um palheiro, perguntou se havia alguém em casa, tirou o chapéu e o poncho e largou-se no sofá. Sentou em cima de um disco de Beethoven. E pegando os cacos negros murmurou: “Me desculpe. Eu não tinha visto este troço". O escritor segue: “Tancredo Lopes representava a vida rural. Vivia num universo sem arte. (...). Faltava aos nossos guascas densidade psicológica”. Tal impressão seria revista pelo escritor anos mais tarde.
Erico Verissimo começa escrever O Tempo e o Vento em 1947 e em suas memórias revela que mesmo sem se dar conta, aquele episódio do tio, homem do campo, na tarde chuvosa tantos anos antes, muito deve ter contribuído para construção dos personagens memoráveis da trilogia. Isso, de alguma forma, responde a questão inicial sobre a importância das raízes culturais e das origens. Nos atípicos tempos em que estamos vivendo, impedidos dos convívios, ainda que em celebrações virtuais, haveremos de ir ao encontro dos “Tancredo Lopes” que tantos de nós haveremos de reconhecer como familiares, e que, por certo, nos acompanham desde sempre em cada fogão aceso, em cada tarde chuvosa, em cada galpão ao sul dos nossos corações.