Francis Fukuyama, o cientista político norte-americano que em dado momento descreveu o colapso da União Soviética como o “fim da história”, agora sugere que a invasão da Ucrânia pela Rússia pode vir a ser “o fim do fim da história”. Ele enxerga os esforços militares conduzidos por Vladimir Putin como um distanciamento dos ideais de uma Europa livre que surgiram após 1991.
No entanto, como um especialista da área, acredito que a guerra indica o fim de outra coisa: da cadeia global de suprimentos que as empresas ocidentais construíram após a queda do Muro de Berlim, há mais de três décadas.
As cadeias de suprimentos – vastas redes de recursos, dinheiro, informações e pessoas nas quais as empresas confiam para levar bens ou serviços aos consumidores – já enfrentavam problemas devido à pandemia, o que resultou em escassez massiva, interrupções de fornecimento e inflação. Contudo, a guerra e as sanções aplicadas à Rússia colocaram mais pressão sobre elas, levando à disparada dos preços da energia e até ao medo da fome.
Mas além desses efeitos de curto prazo, acredito que a invasão da Ucrânia pode levar a um redesenho completo da cadeia global de suprimentos, de uma forma que nem mesmo a pandemia foi capaz de fazer.
EFEITOS IMEDIATOS
A Rússia responde por cerca de 2% do produto interno bruto global, enquanto a Ucrânia é responsável por 0,14%. Estes números indicam que o impacto direto desses países na cadeia global de suprimentos é quase inexistente, mas o mesmo não pode ser dito para algumas áreas importantes.
A Rússia fornece 65% do gás natural consumido na Alemanha e quase 40% para toda a Europa. Ela é a terceira maior exportadora de petróleo do mundo, respondendo por 7% de todas as importações de petróleo bruto e seus derivados para os Estados Unidos. Porém, após o governo Biden sinalizar que deixaria de importar petróleo russo, seu preço chegou a US$ 130 por barril pela primeira vez em 13 anos.
Juntas, a Ucrânia e a Rússia são responsáveis por quase um terço de todas as exportações de trigo no mundo e países como o Cazaquistão e a Tanzânia chegam a importar mais de 90% da Rússia. Com a guerra, provavelmente veremos mais uma interrupção na cadeia global de alimentos, o que poderá colocar em risco milhões de pessoas.
Além disso, a Ucrânia produz 90% do néon semicondutor usado nos Estados Unidos. A Rússia, por sua vez, fornece ao país mais de um terço de seu paládio, um metal raro também necessário para fabricar semicondutores. Embora as empresas tenham estoque suficiente para atender às necessidades imediatas e possam encontrar fornecedores alternativos, algumas interrupções são inevitáveis. E isso ocorre em um momento em que o mundo ainda sofre com uma grave escassez de chips, o que desacelerou a produção de automóveis e elevou os preços de carros novos e usados.
IMPACTO NO COMÉRCIO GLOBAL
Embora os efeitos práticos da invasão nas cadeias de suprimentos sejam relativamente limitados, o impacto no movimento global de bens e serviços foi significativo – e acredito que seja ainda maior do que tivemos com a pandemia.
Após 36 países, incluindo membros da União Europeia, EUA e Canadá, fecharem seu espaço aéreo para aeronaves russas, Moscou retaliou com as mesmas restrições. Como resultado, as mercadorias transportadas por frete aéreo da China para a Europa ou para o leste dos EUA podem vir a precisar de uma nova rota ou usar meios de transporte mais lentos ou mais caros.
A invasão também teve um impacto devastador no comércio global, com centenas de navios-tanque e graneleiros atracados nos portos devido às sanções a embarcações russas. Também resultou em severas restrições de viagens e transporte à Rússia e à Bielorrússia de uma forma que nunca tínhamos visto.
Além disso, o bloqueio de rotas pode causar sérios danos à China. A iniciativa “Cinturão e Rota” é um ambicioso projeto de um trilhão de dólares destinado a remodelar o comércio global e afirmar o domínio de uma cadeia de suprimentos global centrada na China, especialmente para o mercado europeu e asiático. Como a Rússia e a Ucrânia são peças importantes para a iniciativa, é quase certo que ela precisará diminuir seu tamanho e escopo.
NOVA CORTINA DE FERRO
O colunista do New York Times Thomas Friedman, um verdadeiro entusiasta da globalização, em 1996, criou a famosa teoria de que países que possuem McDonald’s não entram em guerra um contra o outro. A empresa conta com cerca de 850 restaurantes na Rússia e 100 na Ucrânia, mas todos estão temporariamente fechados.
Seu argumento era que países com economias e mercados grandes o suficiente para receber um McDonald’s “não entram em guerras; preferem esperar na fila por hambúrgueres.” Ele também se baseava na crença de que cálculos econômicos racionais sempre afastariam conflitos geopolíticos – em outras palavras, os líderes desses países não deixariam suas diferenças atrapalharem o comércio e o lucro.
As cadeias de suprimentos que as empresas construíram nas décadas desde então cruzaram o mundo, ignorando antigas linhas inimigas em prol da eficiência e de lucros mais altos.
Friedman agora admite que a atual posição da Rússia acabou de vez com sua teoria. Eu tendo a concordar e, de fato, o mundo pode estar prestes a ver o surgimento de uma nova Cortina de Ferro na cadeia de suprimentos, com a Rússia e seus aliados de um lado e o Ocidente do outro. As empresas não poderão mais separar seus negócios de geopolítica.
Além disso, a crescente ênfase em questões ambientais, sociais e de governança significa que o desempenho de uma empresa em cada categoria pode afetar suas operações diárias e custo de capital. Em relação ao atual conflito, o esforço para ser mais socialmente responsável é uma das razões pelas quais as empresas têm cumprido as sanções impostas. Também está fazendo com que elas evitem riscos geopolíticos, que podem resultar na retirada de uma economia inteira.
Tudo isso ainda é muito recente e não há como saber com certeza por quanto tempo as sanções permanecerão em vigor ou se as empresas que optaram por deixar a Rússia retornarão. Mas uma coisa é certa: o mundo e sua cadeia de suprimentos nunca mais serão os mesmos.
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