A pandemia provocou uma mudança cultural que leva trabalhadores a reavaliar suas prioridades. Como parte do fenômeno que nos EUA foi batizado de “a Grande Renúncia”, nos últimos dois meses para os quais há dados (setembro e outubro), mais de 4 milhões de americanos pediram demissão. No TikTok, a hashtag #quittingmyjob supera 62 milhões de visualizações. Muita gente filma ou grava o áudio do momento em que pede demissão ao chefe.
“Quer saber por que milhões de pessoas estão se demitindo? É porque temos opções. Antes, você tinha de ter um trabalho em lugar físico, perto de onde vivia. Mas hoje você pode estar no meio do nada e criar um negócio inteiro ou trabalhar remotamente usando seu smartphone. Então por que não vamos tentar?”, escreveu Gaby Ianniello, a face pública do #quittingmyjob.
Ianniello é uma das milhões de jovens que postou seu pedido de demissão no TikTok e, desde então, vem se dedicando a estimular mais gente a fazer o mesmo – com sucesso. Tornou-se influenciadora digital e criou o podcast Corporate Quitter, hoje estruturado como uma startup.
“Ajudo as pessoas a criar uma estratégia de saída para que possam deixar a vida corporativa para sempre”, apresenta-se ela no Twitter. Ao New York Times, Ianniello disse que foram as bolhas nos pés por colocar saltos altos todas as manhãs para seu emprego no setor imobiliário que lhe levaram a desistir do trabalho quando seu empregador chamou os funcionários de volta para o escritório. “Larguei meu trabalho para construir uma nova vida” tornou-se seu mote.
Vai haver uma “Grande Renúncia” no Brasil? Provavelmente não, pelo menos por enquanto.
O movimento chegou ao Reino Unido. No terceiro trimestre, quase 400 mil britânicos mudaram de um emprego para outro depois de pedir demissão, o nível mais alto de todos os tempos. Em outras partes do mundo rico, porém, a “Grande Renúncia” tem sido bem mais difícil de detectar.
Vai haver uma “Grande Renúncia” no Brasil? Provavelmente não, pelo menos por enquanto. Ao contrário do que se vê nos EUA, onde a economia opera perto do pleno emprego, por aqui passamos a maior parte dos últimos dois anos com mais de 14% da população economicamente ativa desempregada – um recorde histórico. Nos últimos trimestres a taxa caiu um pouco, está em 12,6%, mas ainda é mais do que suficiente para desestimular abandonos de emprego em massa. Porém, quando se olha para as ocupações mais ligadas à tecnologia (desenvolvedores, programadores, cientistas de dados, UX designers, etc), a situação não é tão diferente da vista nos EUA. Há mais demanda do que oferta desses profissionais – que têm, portanto, segurança para reavaliar prioridades e pedir as contas se, por exemplo, faltar flexibilidade nos empregos.
A realidade desse microcosmo é, por si mesma, um argumento para sustentar que a volta ao “velho normal” não é uma opção. E um estímulo para se buscar entender por que há tanta tensão entre gestores e seus times em torno da retomada do trabalho presencial. Por que os “big shots” são tão mais interessados no escritório, como questionou a revista The Economist.
Há três explicações, segundo a Economist: a cínica, a gentil e a subconsciente. A cínica nota que os executivos gostam do status que o escritório confere, das salas privativas ao estacionamento ao lado do elevador. A gentil entende que os executivos acreditam que as interações presenciais são melhores para as organizações que lideram. O trabalho virtual corre o risco de criar silos, observam os defensores dessa tese, já que quase só fazemos videoconferência com as pessoas da nossa área – o que não é muito diferente do que se vê num escritório. A explicação subconsciente é que os executivos que estão no poder fizeram suas carreiras no escritório. É lá que se sentem “em casa”, no controle. O choque geracional não poderia ser mais evidente.
Ofereço uma quarta explicação, pragmática. Executivos perdem parte do controle sobre pessoas e equipes quando elas trabalham remotamente. E é duro desapegar do comando e controle.
A ameaça de retorno ao “velho normal” é uma das tendências que vai marcar 2022 no mundo do trabalho. Haverá resistência, como se vê claramente nos EUA, mas não subestime a força do conservadorismo corporativo. Nesta virada de ano, as empresas estão fazendo suas apostas em termos de modelo de trabalho para os próximos meses. O futuro é (predominantemente) híbrido. Mas o que isso significa na prática? É preciso estabelecer as regras do jogo para o novo modelo de trabalho, o que deve começar por buscar respostas para três perguntas decisivas:
- As pessoas vão poder escolher entre o remoto, o híbrido e o presencial?
- No híbrido, vão poder decidir quantos (e quais) dias por semana irão ao escritório?
- Qual será o comportamento esperado (e cobrado) das lideranças?
Quanto mais flexível o modelo desenhado, mais resistente ele será contra as grandes e pequenas “renúncias” do futuro. Quanto mais democrático o processo decisório, menor a tensão entre empregadores e empregados. Mas a flexibilidade traz novos desafios, como o de gerenciar equipes “3 em 1”, ou seja, com gente trabalhando remotamente, presencialmente e em modo híbrido. Como avaliar o desempenho de pessoas quando tenho na mesma equipe colegas do mesmo nível trabalhando de casa, no escritório e alternando entre casa e escritório?
É em torno de perguntas assim que futuros serão construídos nos próximos 12 meses.
Este texto é de responsabilidade de seu autor e não reflete, necessariamente, a opinião da Fast Company Brasil
O post Ameaça do “velho normal” vai marcar 2022 apareceu primeiro em Fast Company Brasil | O Futuro dos Negócios.